quinta-feira, 19 de maio de 2011

Metamorfose



— Sim – respondeu o Imaginário.

— Sim o quê?

— Sim, eu leio o seu pensamento. Não foi isso que você perguntou agora?

— Eu não disse nada.

— Mas pensou. Ou não?

— Não, quer dizer... Você tá me assustando!

— Desculpe. Já quer mudar?

— Não.

Betina parou com a mão em cima da torneira do chuveiro e observou por uns segundos os dois círculos luminosos no canto escuro embaixo da pia. Estava conversando com uma sombra embaixo da pia. Talvez a água fria lhe trouxesse lucidez suficiente para sustentar cinco minutos de conversa. E talvez isso lhe fizesse deixar de ver o que estava vendo.

— Ah, foda-se.

Desistiu de girar a torneira e deu um passo para fora do Box. Dessa vez, quem girou foi a sua cabeça. Parecia que tinha se jogado em uma piscina de vodca. Não se lembrava de ter bebido tanto. Com certeza causou algum problema por aí. Cambaleou, quase derretendo pela parede até conseguir se sentar no vaso sanitário que mais parecia uma pedra de gelo.

—  Eu não entendo o porquê de ser tão frio aqui.

— O que você queria? — Os “olhos” da criatura se apagaram de vez, dando lugar a uma boca luminosa logo abaixo — São três e meia da madrugada, está chovendo lá fora e você está completamente pelada.

A garota soltou um gritinho e se encolheu no vaso sanitário. De repente relaxou, encarando o vulto embaixo da pia, agora à sua frente. A boca sumira, ficando só os dois olhos como de costume.

— Eu devo ser imbecil mesmo. Por que eu teria vergonha de uma sombra idiota?

— A sombra — retrucou o Imaginário. — é a projeção de uma imagem. Agora, olhe em volta. Se eu sou uma sombra, o que exatamente está me projetando?

—Você, além de chato, tem cada ideia macabra, credo...

— Macabro seria se eu fizesse a caixinha de música do seu quarto tocar sozinha. Quer ver?

— Não, porra!

— HAHAHAHAHAHAHAH!


Os dois permaneceram calados por alguns instantes. As gotas de chuva davam petelecos na janelinha do banheiro. De vez em quando, um trovão. E o silvo insuportável do vento brincando de fantasma. Betina respirou fundo. A cabeça ainda latejava, de leve. Suas unhas já estavam arroxeadas. Pensou em se enrolar numa toalha, num lençol, qualquer coisa, mas, tinha a impressão de que, se se mexesse daquela posição, cairia congelada. Viraria picolé de vodca. Olhou então para as pernas. Estavam pálidas. Devia estar parecendo uma defunta. Assim que fizesse sol, correria para a praia. Mas aquilo também deveria ser por conta do frio. E, claro, a lâmpada do banheiro era fluorescente, sem vida, isso fazia qualquer ambiente virar um hospital. Seria bom estar em um hospital agora. Não gravemente ferida, lógico, mas só em observação. Os hospitais têm aquecedores que provavelmen...

— Então?

— Ah! Que susto! — a moça berrou com o queixo batendo de frio. — Esqueci que você tava aí.

— Sei. Já decidiu? Vai mudar?

— Não sei. Talvez. Primeiro, me responda uma coisa: eu estou sonhando?

— Eu não acredito que você ainda continua me perguntando essa merda — disse o vulto sem a menor paciência. — Já disse que isso é relativo, mas você não entenderia. Se sonhar pra você for o que as pessoas fazem quando deitam e dormem, não, você não está sonhando. Se quiser experimentar, tente algo estúpido, sei lá, pular de cima do prédio.

— Tá muito frio, eu não sairia daqui.

— Você lembra o que estava fazendo antes de chegar?

— Só sei que tem a ver com  vodca — respondeu franzindo o cenho. — É... Dizem que bêbado nunca erra a própria casa né? Deve ser isso. 

Betina baixou a cabeça. Queria poder voltar no tempo. Alguns pedaços da memória iam e viam em sua mente. Finalmente, respirou fundo e disse:

— Estou pronta. Quero mudar.

Os olhos do Imaginário voltaram a sumir e, embaixo da pia, fez-se um largo sorriso de luz. Em menos de um segundo aquela sombra cresceu e engoliu todo o banheiro deixando tudo na mais completa escuridão. A única coisa visível para Betina era a boca fantasma do Imaginário.

— Desculpe, preciso de mais espaço para te enxergar melhor — disse a criatura, que agora possuía olhos três vezes maiores.

— Certo — gaguejou a moça. — Como você vai fazer isso?

— Estou vendo os fragmentos de realidade espalhados pelo seu corpo. Posso ver tudo o que você é daqui de onde os meus olhos olham. Consegue ver?

— Eu não consigo ver nada. Mas sinto.

— É natural.

— Também não tenho mais frio.

— Isso também é natural. Agora, preciso que você imagine como você quer ser. Assim que você imaginar, eu vou poder romper os fragmentos que você não quer e transformá-los no que você quer.

— Você pode manter alguns? Tem coisas que eu quero preservar.

— Claro.

— Ah, eu não tinha pensado nisso. Como posso retribuir?

O imaginário ficou um tempo em silêncio, os dois círculos dourados contemplando a moça que não sabia se estava louca, morta ou simplesmente sonhando. Por fim, disse:

— Faço isso porque gosto. Mas, se você quer realmente me pagar, pode me apresentar a tal da vodca.

Betina sorriu, descontraída.

— Vai doer?

— Vai.

— Uma vez você me disse que coisas fáceis e difíceis de fazer são tudo questão de escolha. Bem que podia ser assim com a dor.

— Algumas mudanças apenas aparentam doer. Sentir dor ou não também pode ser uma questão de escolha. Eu só estou conduzindo um processo natural, que pode doer se você quiser que assim seja. Senão, apenas escolha outra opção. No fundo, tudo isso não passa de um devaneio. Cabe a você preferir que ele seja consciente ou inconsciente.

— Então, já escolhi.

O que Betina podia visualizar agora eram duas mãos brilhantes flutuando no meio do nada, vindo em sua direção. Quando as mãos tocaram seu corpo, a sensação era diferente de tudo. Não era dor, mas, definitivamente, ela teria que inventar uma palavra para descrever aquilo.

O Imaginário estava ocupado usando as mãos para mudar a realidade de Betina, por isso, ao invés de usar a sua boca fantasma, escolheu falar dentro da sua mente:

— Você está se transformando em algo muito bonito. Consegue ver?

— Eu ainda não consigo ver nada — pensou Betina. — Mas sinto.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O Imaginário



Pessoas são problemáticas.

— Você é real? Pergunta mais ridícula... Responder a isso não é nada simples. Na verdade, eu nem sei a resposta. E também não quero saber. Se alguém souber, não me diga. Às vezes gosto de pitadas de ignorância na minha comida.

— Se já incomoda pensar que certos fatos são coisa da nossa cabeça, pense só o que é cogitar SER a coisa da cabeça de outrem.

— Chega, vou abrir os olhos — pensou o Imaginário. — Pronto. Agora, não escuto mais nada. Ou quase nada. Não posso cheirar, falar ou sentir o toque físico. Bem pouco. Em compensação, enxergo melhor do que qualquer aparelho jamais inventado.

Dos cinco sentidos, o Imaginário só podia usar apenas um de cada vez com perfeição, enquanto os outros permaneceriam defeituosos até que ele trocasse.

— Agora — continuou —, fecho os olhos e abro os ouvidos. Certo. Posso ouvir o que ninguém mais ouve, a qualquer distância, penso eu.

— E se eu quiser gritar?  

O Imaginário fechou os ouvidos e escancarou a boca:  

— AAAAAAAAAAH!!!

Abriu os olhos depressa. Olhou em volta. Ninguém. Ainda podia ouvir o próprio eco, mil vezes mais potente do que qualquer som. Mas ninguém ouviria. Não é muita vantagem ter habilidades especiais se você não tem ninguém com quem compartilhá-las.

As ruas estavam todas vazias, cheias de prédios vazios com vários apartamentos vazios. Uma cidade vazia. Em um mundo completamente vazio.

— Cansei.

O Imaginário estalou os dedos e mudou de mundo. Esse era diferente. Ruas apinhadas de carros, prédios e pessoas. Desse ele gostava. Os mundos vazios só serviam quando queria ficar sozinho, pra encontrar alguma paz. Mas quando a paz também começava a dar nos nervos, aí ele procurava um mundo cheio de Pessoas. Pessoas para analisar, pessoas para influenciar, ou até para fazer companhia. Sei lá, de repente contar uma história interessante. Se você soubesse como entreter o Imaginário, ele poderia te oferecer muitas recompensas. Desde que você não tivesse medo. Assim, o Imaginário sempre tinha o que fazer da vida. Ou o que fazer da vida dos outros.  A graça definitivamente estava nas pessoas.

Pessoas são essencialmente problemáticas.

Transformar a realidade era o seu passatempo predileto. Principalmente se ele encontrava alguém que topasse jogar. A capacidade de transformação do Imaginário crescia à medida que as pessoas imaginavam.

Mas, sempre existe a escolha. Sempre existiu e para sempre existirá.

Para o Imaginário não existiam escolhas certas e erradas. E era isso que as pessoas não compreendiam — ou fingiam não compreender.

Pessoas são perigosamente problemáticas.

Ao invés de escolher, as pessoas preferiam questionar, perguntar, querer saber, quando o jogo era simplesmente imaginar.

— Você é real?

— Isso é mesmo possível?

— Estou sonhando?

Isso era de doer o juízo porque, apesar de serem perguntas cuja possibilidade de resposta é SIM ou NÃO, não era tão fácil assim. Nunca era. Até porque ele jamais admitiu saber qualquer dessas respostas.  

O Imaginário achava até divertido ver pessoas com várias CERTEZAS sobre as coisas da VIDA. Elas esqueciam que, no fundo, elas não SABEM, apenas ESCOLHERAM pensar que isso ou aquilo era dessa ou daquela maneira.

Há muito tempo o Imaginário desistira de tentar descobrir se o que ele via, ouvia, tocava ou sentia era real. Ou se ele mesmo era fruto de uma cabeça que também pensava ser real, mas que na verdade também era fruto de outra cabeça que também pensava que pensava que pensava...

Nem sempre SIM ou NÃO resolveria.

— E o que é a porra da realidade? — pensava o Imaginário. — Pergunta mais ridícula...