sábado, 10 de dezembro de 2011

A Dama da Rua 309



Os pés do rapaz já doíam há algum tempo. Mas ele não ia parar. Não agora. Não ainda. Tinha a sensação de que, se parasse, cairia. Por isso, continuava, a passos lentos, sempre constantes, sob a luz fria da lua cheia, única coisa que iluminava os trilhos onde pisava. Cansara de esperar o trem. Duvidava se este realmente chegaria. De tempos em tempos passava a mala de uma mão para outra a fim de descansar um braço de cada vez.

Até que veio aquela voz, somando-se ao ruído dos grilos e das pedrinhas que estalavam debaixo dos seus passos na estrada sem fim. Aquela voz, tão conhecida, até que lhe trouxe um pouco de conforto:

— Santiago!

O rapaz tirou uma carta de baralho do bolso e lá estava a silhueta de olhos luminosos chamando seu nome.

— Você sempre escolhe aparecer na carta do Coringa.

— Não gosto de ser representado por um número — respondeu a criatura. — Onde estamos?

— Não era eu quem devia perguntar? É você quem sabe das coisas.

— Essa é a ironia. — comentou o Imaginário. — Eu só sei quando você sabe. Além do mais, você é o profissional por aqui. O “mágico”.

— Ah, pare com isso.

— É verdade! — continuou a sombra. — Gostei muito da sua última apresentação. Parabéns!

— Ah! Você viu?

— Claro! É uma pena que ela não estava lá.

— Ah... Você viu.

— E pensar que tudo isso foi por causa dela.

— É... — disse o rapaz. — Parece que foi ontem. Eu não pretendia ficar na cidade, só havia agendado uma noite de espetáculo, ali, na Rua 309. Um fracasso total. Ninguém apareceu.

— Ninguém? — sorriu o Imaginário.

— Só ela. Na fileira da frente, pedindo para que eu não cancelasse a apresentação. Confessou-me que era a sua primeira vez. Nunca havia presenciado um número de mágica na vida. Isso me deu toda a motivação do mundo para fazer um grande show. Nunca vou saber se ela disse que gostou só pra me agradar.

“Soube depois que ela havia convencido os donos do teatro a me deixarem apresentar por mais alguns dias. E os dias se tornaram meses. A partir daí, foi sucesso de público, O teatro lotado todos os dias, lembra?”

— Sim, eu me lembro. — disse a voz vinda da carta do Coringa. — E ela lá.

— E ela lá — repetiu Santiago com alegria —, sempre na mesma poltrona, observando cada número, cada movimento, de cada truque. O que mais me maravilhava era que ela sempre via tudo com o mesmo entusiasmo, se surpreendia sempre com as mesmas coisas. Como se fosse uma eterna primeira vez. Demorei um pouco a perceber que eu já não me importava com o teatro lotado, com o quanto as outras pessoas adoravam meus números. Quando a cortina se abria, parecia que uma luz se acendia sobre ela e o resto da plateia ficava na escuridão. Depois de um tempo, notei que era eu quem a assistia, prestando atenção a cada pequeno gesto, cada expressão de surpresa, espanto, alívio... Esse era o seu truque.

“Comecei a inventar coisas novas, só para ver como ela reagiria. O que faria. Eu acho que ela nunca acreditou de verdade que, quando as luzes se acendiam, era tudo para ela. Por ela.”

— Até que... — disse a sombra.

— Até que acabou. Sumiu. — respondeu Santiago, trocando mais uma vez a mala de mãos.

— Você sabia que isso ia acontecer. Você é criado para isso. É um viajante. Não devia se importar tanto com essas coisas. O importante é que valeu a pena tudo aquilo. Ou não? Está arrependido?

— Não sei o que eu estou ou não estou. Não sei decifrar. Fui pego de surpresa. A cortina se abriu, como sempre. As luzes se acenderam, como sempre. Eu sorri em direção à mesma poltrona, como sempre. Mas algo não aconteceu como sempre. Seu último truque foi muito bem executado. O teatro estava lotado e eu não via ninguém. Eu ainda estava preso à ilusão da primeira vez. E logo agora que tinha preparado um número especial. Pretendia chama-la ao palco para ser minha ajudante por uma noite. Imagino a cara dela. Nunca vou saber se ela aceitaria. 

Os olhos do mágico se encheram de lágrimas.

— Não tem mais importância. Depois do show me entregaram um bilhete dela, me informando que não estaria mais na plateia, que não veria mais minhas mágicas. E pronto.

— Provavelmente enjoou e voltou à sua vida normal — explicou o Imaginário. — Você sabe melhor do que ninguém que as coisas mudam o tempo inteiro. Você mesmo vive dessas mudanças. Elas te alimentam. Você morreria se ficasse na rotina. Precisa de novos truques, novos teatros, novas plateias. Lembre-se da sua sagrada liberdade. O seu poder de fazer, ter e ser tudo o que quiser. Mude a si mesmo você também.

— Foi o que eu fiz. — respondeu o rapaz sem olhar para a carta do Coringa. — E é Por isso que fui embora. Eu sou a favor das mudanças. Algumas apenas doem mais do que outras. E as dores sempre passam. A minha está passando. À medida que vou andando, sinto a mala mais leve.

— É isso, você entendeu! — berrou a silhueta.

— Não. Eu sempre soube.

O imaginário soltou uma gargalhada que ecoou pela estrada infinita.

— Jamais imaginei que fosse viver uma grande aventura no Teatro da Rua 309.

— E aí? — disse a sombra na carta — está pronto pra outra aventura?

— Sempre estou.  Mas primeiro, preciso saber pra onde vou, senão essa estrada não termina.

— Fique à vontade — disse a voz.

O rapaz fechou os olhos em silêncio. Depois de alguns segundos, uma luz forte surgiu ao longe, junto com um barulho muito característico.

— Lá vem o trem. Sinal de que você já decidiu para onde vai.

O trem parou e a porta se abriu. Antes de entrar, Santiago assumiu uma expressão até então desconhecida pelo Imaginário. Impossível dizer se era uma cara de surpresa, confusão, alegria ou tudo junto. Ficou assim por um tempo, observando o caminho que percorrera a pé. Depois abriu um sorriso, subiu no trem e sentou em um banco perto da janela. O trem seguiu viagem enquanto ele olhava a lua cheia ainda rindo.

— Posso saber qual é a graça? — indagou o Imaginário de dentro da carta do Coringa.

Santiago encarou a silhueta luminosa e sussurrou:

— Esqueci a minha cartola no palco do teatro.

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