O Imaginário percebeu a coisa
toda desde o início.
Os dois se viram de longe, mas
fingiram que nada havia acontecido. O Rapaz e a Moça. Eles estavam bem ali, no
meio da multidão. Amigos, parentes, colegas, conhecidos e desconhecidos. Todos naquele
mesmo lugar. Eles se evitavam ao máximo, já que entendiam que a força do
encontro poderia causar um evento de consequências incontroláveis. E
precisavam, mais do que nunca, daquilo que não queriam ter naquele momento:
controle.
A distância ajudava a aliviar a
tensão entre eles, que mais se assemelhava a uma corrente elétrica, constante,
firme, ansiando por um condutor.
O que fazer?
Ficar longe
Mas como?
Melhor afastar mais
Será que é fácil?
Não sei. E não quero saber.
Apesar de estarem em extremos
opostos, tinham plena certeza de que pensavam a mesma coisa. Situação
engraçada, essa. Não se olhavam, porém, sabiam perfeitamente onde cada um
estava. Conheciam os passos um do outro. Moviam-se através do local, por entre
as pessoas, fazendo um esforço gigantesco para não se esbarrarem. Quem olhasse
apenas para um deles veria nada mais que uma pessoa comum conversando, bebendo,
rindo e admirando o ambiente. Entretanto, o primeiro que tivesse a esperteza ou
a sorte de observar os dois... Àquele sim, tudo seria revelado. Era como se dançassem
à distância. O Imaginário era o único que via. Havia ali um campo
magnético quase visível. Pouco menos tangível. Perigoso. Sedutoramente
perigoso. O Imaginário gostava desse perigo. Era o que lhe deixava vivo.
Obra do Imaginário? Ninguém
saberá. Fato é que o inevitável aconteceu: Rapaz e Moça se acharam frente a
frente. Perto. Perto demais. A tensão tornou-se rapidamente insuportável. E então
foi possível ouvir algo que se parecia com um sinal, de frequência tão alta que
poderia ser perdido à menor distração. Era música. E também foi possível sentir
um perfume muito suave para os desavisados, entorpecente para os atentos.
Eles estavam perto demais.
Ainda assim havia uma saída. Tudo
que precisavam fazer era cada um virar para um lado e seguir calmamente,
aumentando de novo a distância e reduzindo a tensão. Porém, a música já ia
alta, o perfume já enfraquecia a capacidade de raciocínio. Até que, em meio a toda
aquela atmosfera inflamável, eles resolveram acender o fósforo:
Olharam-se no olhos.
Olharam-se no olhos.
Em uma fração de segundo, Rapaz e
Moça já corriam de mãos dadas para fora daquele lugar, atropelando, se batendo,
derrubando... fugindo. Correram por ruas e becos, subiram e desceram escadas,
pularam muros e janelas. E chegaram. A brisa soprava gentil enquanto o sol se
punha, dourando a água do mar cristalino e sem ondas. Não havia mais ninguém em
qualquer direção que se quisesse olhar. Rapaz se adiantou:
— Pode vir?
— Tudo bem. Posso pisar aqui.
Moça deu um passo à frente e
enterrou devagar os dedos dos pés na areia branca. Os dois caminharam até a
beira do mar até sentir os tornozelos na água fresca. Moça sorriu diante da hesitação de Rapaz.
— Agora sou eu quem te convida a entrar.
— Como faço isso?
— Confie em mim.
Rapaz segurou firme a mão de Moça
e a seguiu até sentirem a água acariciando o peito. Nada mais importava. Não
precisavam se esconder ali. Toda aquela energia domada poderia enfim ganhar
merecida liberdade. E foi exatamente o que se deu. Seus lábios enfim se
encontraram como há muito ambicionavam. Um novo encontro de velhos conhecidos.
Lábios que conversavam com propriedade. Que se sabiam por inteiro. A água não
era capaz de refrear o calor daqueles corpos que tanto se compreendiam, mesmo
sem compreender o porquê. Dançavam ao som daquela música que se recusava a permanecer apenas
nos ouvidos. Eles sentiam nos poros o ardor de cada nota musical ao passo que o
perfume de suas peles aumentava sua embriaguez. O atrito de forças tão
complementares desafiava a respiração, que tentava a todo custo acompanhar os
suspiros profundos, insistentes em se fazer ouvir. Não havia pessoas, não havia
julgamento, não havia roupa.
Já era noite. Nem perceberam
quando chegaram à areia, rolando, ainda ligados, se alimentando um do outro como
vampiros, sorvendo cada gota de desejo. Devorando cada fio de vontade. Também
não se deram conta de quando pararam para observar as estrelas. Ainda deitados.
Ainda unidos. A eletricidade dava voltas por todas as células, fazendo os
corpos tremerem no compasso de batidas violentas daqueles corações que pulsavam
em uníssono.
A luz da lua era como tinta sobre eles. Ficaram ali, se olhando nos olhos, enxergando o que o outro revelava.
As mãos não pararam nem por um instante de acariciar, de convidar. De confiar.
E dormiram
Quando acordaram ainda estavam se
olhando. Porém, não estavam na praia. Se achavam de volta ao local onde tudo
começou. Amigos, parentes, colegas, conhecidos e desconhecidos. Todos naquele
mesmo lugar. Não havia passado um único segundo sequer desde que se olharam nos
olhos. E naquela fração de segundo, em silêncio, eles sabiam que os dois
perguntavam a mesma coisa:
Aconteceu?
Tivemos o mesmo sonho?
E eles sabiam a resposta. Os mais
atentos seriam capazes de vislumbrar o esboço, o fantasma de um sorriso
cúmplice, no cantinho da boca. Quase como uma piscadela. Discreto demais para os
desavisados.
E assim, dentro daquele fragmento
de olhar, eles souberam que tudo estava combinado. Com todas as linhas.
Quem viu?
Somente o Imaginário, que não conseguia segurar a gargalhada.
E por que ele ria?
Porque ele sabe guardar segredos.
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